'Relação parasitária': para especialistas, visita de Biden à África não agrega nada ao continente
15:16, 25 de outubro 2024
Biden está terminando seu mandato sem concorrer à reeleição e sem ter pisado uma vez sequer na África, um dos continentes que mais crescem em termos econômicos e populacionais. Contudo a ausência norte-americana não é sentida. Pelo contrário, é preferível, afirmam analistas à Sputnik Brasil.
SputnikO presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, estava de viagem marcada a Angola entre os dias 13 e 15 de outubro, logo depois de passar na Alemanha para um
encontro do grupo Ramstein. No entanto, as visitas foram adiadas em decorrência do furacão Milton.
A ausência de Biden no continente africano e o histórico dos Estados Unidos na região foram tema do episódio desta sexta-feira (25) do
Mundioka,
podcast da Sputnik Brasil apresentado pelos jornalistas
Melina Saad e Marcelo Castilho.
Presidentes dos EUA não visitam a África
Aguinaldo Ramos, analista internacional baseado em Angola, ressaltou ao programa que já é comum que os chefes de Estado norte-americanos não visitem o continente africano. "É uma questão cultural", disse.
Dos 46 presidentes que os EUA tiveram desde sua independência, apenas 6 visitaram a África, destacou o especialista. Quem mais foi à região foi George H. W. Bush, "Bush pai", que foi a 11 países. Em seguida estão Bill Clinton e Barack Obama, ambos visitando 8 países.
"Isso nos dá uma compreensão de que a não visitação de África por parte dos líderes norte-americanos é mais do que uma questão de agenda. É cultural."
A prioridade estadunidense sempre foi o Atlântico Norte, a Europa, enquanto o interesse na África sempre foi "estratégico", disse Ramos. Como exemplo dessa ganância — não só norte-americana, mas do Ocidente como um todo — está o o urânio disponível no continente.
Foi o urânio saído da República Democrática do Congo, da mina de Shinkolobwe, que alimentou o Projeto Manhattan e criou a primeira bomba atômica. Da mesma forma, o urânio do Níger sustenta 50% das usinas nucleares francesas.
Com uma matriz elétrica quase 80% nuclear, a França é um dos países mais avançados do mundo nessa área. Enquanto isso, "o Níger é um dos países menos eletrificados do mundo".
"A relação com o Ocidente tem sido parasitária. É uma relação em que o Ocidente tira muito de África e África não ganha nada."
Além dos interesses por recursos minerais, os Estados Unidos utilizam diversos países da África como pontos logísticos em sua campanha de policiamento mundial. São bases e outras estruturas militares presentes em quase metade dos países africanos.
Era o caso da base militar de Agadez, descrita pelo especialista como "a base de drones mais importante dos EUA fora dos EUA". "Nem nos Estados da OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte] os Estados Unidos implantaram uma base de drones tão importante como aquela."
Em março, o
novo governo do Níger cessou a cooperação militar do país com os norte-americanos, e em agosto os militares estadunidenses devolveram o controle do local às forças nigerinas.
"Era uma base de drones que participou de muitos conflitos. Na Ucrânia, no Iêmen. Ou seja, os EUA tinham naquela base militar a cobertura de todo o Mediterrâneo e parte significativa do Oriente Médio."
Qual o histórico dos EUA na África?
A visita de Biden a Angola, impedida pela chegada do furacão ao estado da Flórida, não foi cancelada, mas sim adiada para dezembro. Ou seja, após as eleições presidenciais e a definição de um novo presidente norte-americano.
Em tese, Biden ainda será presidente dos EUA, mas chega ao país africano durante a fase de transição de seu governo e dificilmente poderá tomar alguma decisão vinculante.
Orlando Muhongo, analista internacional e mestre em relações interculturais pela Universidade Aberta (Portugal), afirmou ao Mundioka que nunca viu algo assim na história.
"Qual a importância que teria a vinda do presidente Biden a Angola em dezembro, depois de os Estados Unidos elegerem um novo presidente?"
Essa indiferença norte-americana em relação à África, destacou também Muhongo, não se resume apenas ao governo de Joe Biden. Durante a história, os EUA tiveram uma posição ambígua quanto à África, ora ignorando o continente, ora ressurgindo quando outra potência passava a ter uma presença ativa.
Foi durante a Guerra Fria que a maior parte das intervenções norte-americanas aconteceram na África, sempre buscando "conter as lutas emancipatórias que os vários povos da África seguiam".
"A União Soviética representava espírito revolucionário e a emancipação dos povos", explica o especialista. "Foi assim que muitos dos movimentos que ansiavam a independência no continente africano viram o comunismo como um exemplo a seguir."
Diante dessa admiração, os soviéticos ajudaram a armar vários movimentos, e, para rivalizar, os EUA e as demais potências coloniais adotaram uma postura "cruel" no continente africano.
"É daí que eles participam no assassinato de vários líderes. Em 1961, a CIA participa no assassinato de Patrice Lumumba e Thomas Sankara. Os EUA participam também no golpe de Estado contra Kwame Nkrumah e, mais recentemente, de Muammar Kadhafi."
Sem imperialismo: Rússia e China chegam à África
Dessa forma, a rara visita de Biden à África, e em especial a Angola, pode ser vista como um reflexo não só da perda de prestígio norte-americano no continente, mas à luz da
chegada da Rússia e da China à região.
Nos últimos anos, através da Iniciativa Cinturão e Rota, a China tem realizado investimentos por todo o continente. Mas, ao contrário do Ocidente, "a estratégia chinesa tem como base o princípio ganha-ganha", ressaltou Muhongo.
"A China não se limita em extrair matérias-primas. A China participa em um processo de desenvolvimento, de criação de infraestruturas e cedência de empréstimos."
Por outro lado, a Rússia se posiciona no continente combatendo o terrorismo do Norte da África até o golfo da Guiné, diz Ramos.
Desde as intervenções norte-americanas no Oriente Médio e o golpe de Estado travado na Líbia, a região se tornou um caldeirão para o surgimento de milícias fundamentalistas islâmicas. A Rússia, desde o início da década, tem atuado como uma força de combate aos terroristas na região do Sahel.
O destaque dado a Angola por Biden, contudo, tem um foco especial: o corredor de Lobito, infraestrutura aquática, ferroviária e rodoviária que liga a Zâmbia e a República Democrática do Congo ao porto de Lobito, em Angola, permitindo o escoamento de produtos e possivelmente ligar o oceano Índico ao Atlântico.
Tanto o Congo quanto a Zâmbia e a Namíbia possuem relações muito estreitas com a China. Isso fez com que os Estados Unidos, "no afã de tentar fazer renascer sua posição hegemônica no continente, agendou essa visita eventual a Angola", destacou Muhongo.
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