Panorama internacional

Ameaças de Trump visam gerar instabilidades benéficas para setores como a indústria bélica dos EUA

As recentes e polêmicas declarações intervencionistas do futuro presidente dos EUA, Donald Trump, têm objetivos específicos para beneficiar setores da economia do país, entre elas a indústria bélica e a de petróleo e gás.
Sputnik
Especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil avaliaram que, apesar das ameaças de intervenções e do uso da força, Trump deve repetir as medidas adotadas no primeiro mandato, em 2018, com foco na desregulamentação ambiental, na guerra comercial, na imposição tarifária e no endurecimento da política migratória.
Já as bravatas, vindas de uma das maiores potências mundiais, têm outros fins: gerar instabilidades no cenário geopolítico mundial que resultem em lucros para as indústrias norte-americanas que Trump representa.

"Todo cenário de instabilidade terá impacto sobre a economia internacional. Mas existem setores do capital, como a indústria bélica e toda a cadeia produtiva que a cerca, que se beneficiam, até certo ponto, de instabilidades", comentou o professor de história da América na Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador da Rede de Estudos dos Estados Unidos, Roberto Moll Neto.

Essa instabilidade pode gerar perda de confiança nos Estados Unidos, ponderou, mas alimentar outros candidatos de extrema-direita na Europa e na América Latina e conseguir apoio internacional para pressionar a União Europeia (UE), o Panamá e o Canadá.
Pesquisador do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e doutor em relações internacionais, Pedro Allemand Mancebo Silva destacou que a atual retórica trumpista também favorece as big techs.
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"É boa para os eleitores do Vale do Silício que estão apostando que conseguem direcionar a administração Trump para seus interesses por meio de concessões, como vimos nas vergonhosas, mas nada surpreendentes, adesões de Elon Musk e Mark Zuckerberg à ideologia e à administração trumpista", comentou ele.
Além disso, complementou que muito do que Trump fala e faz "tem um elemento de performance, de showman e dessa postura de 'macho' que ele cultiva como parte de sua reputação".
Na opinião de Silva, a estratégia de mobilização política dos trumpistas tem a desinformação e o alarde como ferramentas para engajar adeptos e apoiadores, criando um senso de pertencimento e comunidade e de uma agenda política a ser implementada.

"Essa função catalisadora trouxe não só sucessos eleitorais, com Trump levando a presidência e a maioria nas duas casas do Legislativo dos EUA, mas também tem tido impactos nacionais e locais em termos de políticas públicas."

Dentre as promessas plausíveis, Moll Neto considerou a mais grave o projeto de perseguição e deportação de imigrantes, por ser mais factível e ter impacto profundo na vida de centenas de milhares de pessoas, inclusive latinos que nasceram nos Estados Unidos.
"Além disso, traz impactos sobre a economia dos Estados Unidos e de países na América Latina, especialmente no México e na América Central", acrescentou.
Já para Silva, a declaração mais grave do futuro presidente diz respeito ao retrocesso da política ambiental dos EUA.

"Enfrentar a mudança climática, mitigar seus efeitos, mas também buscar revertê-los é o principal desafio que a humanidade enfrenta neste momento. Um presidente abertamente negacionista, apoiado por negacionistas, com uma agenda negacionista, é a receita para vários ecocídios", opinou ele.

A expansão da produção de combustíveis fósseis nos EUA tende a aumentar nos próximos anos, apostou o especialista, "inclusive sobre áreas protegidas como o Artic National Wildlife Refuge, no norte do Alasca".
Ele lembrou que, no primeiro mandato, Trump flexibilizou a legislação ambiental e liberou licenças de exploração de petróleo em área protegida. O feito deve se repetir no segundo mandato e agravar a crise climática em prol do enriquecimento das companhias americanas de petróleo e gás.

"Isso também é um baque para esforços de transição ecológica mundo afora, uma vez que empresas de energia baseadas nos EUA — e que têm muitos ativos e negócios nos ramos da geração e do desenvolvimento de energias limpas — podem redirecionar seus esforços para a continuidade da exploração de combustíveis fósseis, diminuindo os estímulos e a disponibilidade de capitais para projetos ligados à transição ecológica."

Moll Neto lembrou que, das muitas promessas que Trump fez na primeira gestão, ele efetivamente cumpriu algumas, como a retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris e a perseguição, o encarceramento e a deportação de aproximadamente 1,5 milhão de imigrantes.
Como promessas cumpridas parcialmente, podemos destacar a proposta de renegociar acordos comerciais para colocar os Estados Unidos em uma posição mais favorável no comércio internacional, como o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA, na sigla em inglês), que resultou no Acordo Estados Unidos-México-Canadá (USMCA, na sigla em inglês).
Na economia, Silva disse que Trump deve renovar ações do primeiro governo, como cortes de impostos para os mais ricos e a imposição de tarifas aduaneiras, visando fortalecer a indústria norte-americana, cujas consequências foram o aumento de preços ao consumidor e a guerra comercial com a China.
A guerra comercial com a China, contudo, não provocou os resultados prometidos, analisou o professor da UFF.
Assim como prometeu acabar com o conflito na Ucrânia e na Faixa de Gaza tão logo assuma, Trump também afirmou no primeiro mandato que acabaria com os conflitos no Afeganistão e no Iraque. Reduziu o número de tropas estadunidenses nesses países e arquitetou a retirada completa do Afeganistão, que foi concretizada de forma quase improvisada nos primeiros dias do governo Biden, lembrou o professor da UFF.

"Como promessa não cumprida, podemos lembrar que Trump afirmou que conseguiria pôr fim a guerras no Oriente Médio e acabar com a influência do Irã na região."

Anexação da Groenlândia

A anexação da Groenlândia, proposta por Trump, é uma estratégia de pressão para aumentar a presença dos EUA no território. Atualmente, a defesa da Groenlândia é custeada pela Dinamarca e pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
"Existe um receio de que China ou Rússia aumentem a presença na região, seja para explorar recursos e/ou estabelecer posições militares. Portanto, as falas de Trump visam pressionar a Dinamarca e a União Europeia para aumentar os gastos próprios com a defesa da Groenlândia, o que indiretamente favorecerá a indústria bélica estadunidense e concederá direitos de exploração a companhias transnacionais afinadas ao governo Trump", esclareceu a professora da UFF.
Ambos os entrevistados descartaram qualquer possibilidade de uso da força por parte dos EUA, pois prejudicaria as relações com a UE e acarretaria custos dispendiosos para a população norte-americana.

"As falas sobre comprar a Groenlândia não só remontam a uma iniciativa estratégica americana que só se encerrou após a Segunda Guerra Mundial e a instalação de uma base aérea permanente na Groenlândia — a base aérea de Thule —, mas também a uma vontade de expandir a presença americana no Atlântico Norte", acrescentou Silva.

Segundo ele, as declarações de Trump já surtiram o efeito pretendido pelo futuro mandatário que recebeu a oferta do governo da Dinamarca de expandir a presença militar dos EUA na colônia: "Ou seja, ele já conseguiu algo que é do interesse dos EUA só por meio das bravatas", disse o pesquisador da PUC-Rio.
Os Estados Unidos já tentaram comprar a Groenlândia em algumas ocasiões devido à riqueza do solo em minério, petróleo e gás, incluindo minérios fundamentais para a produção de chips, baterias e componentes tecnológicos, "fundamentais para setores que apoiaram decisivamente a campanha de Trump".
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Canal do Panamá

Rota estratégica para os EUA, o canal do Panamá tem cerca de 6% do comércio internacional passando por ele e 12% a 15% do fluxo de mercadorias vêm do país norte-americano.

"Além disso, o canal é fundamental para a defesa estadunidense, por ocasião da necessidade de transportar efetivos terrestres e navais de forma rápida entre o Atlântico e o Pacífico. Trump quer pressionar o governo panamenho a conter ou extinguir a presença chinesa no canal do Panamá", explicou Moll Neto.

O pesquisador também opinou ser "pouco factível" que o Canadá se torne o 51º estado dos Estados Unidos, e afirmou que o convite de Trump de anexar o Canadá aos EUA está na busca de um acordo sobre tarifas que proteja a indústria estadunidense da concorrência canadense sem afetar as vantagens que os produtos de empresas sediadas nos Estados Unidos encontram no país vizinho nem a importação de gás e petróleo canadense.
Por meio de contrato, a China hoje controla dois portos no canal, o que tem trazido vantagens para o fluxo de mercadorias chinesas e, também, coloca a China em posição privilegiada para a coleta de informações sobre trânsito no canal.

"Soma-se a isso a insatisfação estadunidense, com o aumento de custos sobre o transporte de cargas no canal. O desfecho é difícil de prever. A retomada do controle à força, neste momento, parece improvável. Envolveria, inclusive, um atrito com a China. Não parece haver disposição da sociedade civil e de parte do congresso em apoiar uma aventura como essa", disse o professor da UFF.

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