No fim de janeiro deste ano, rebeldes do Movimento 23 de Março (M23) lançaram uma ofensiva no leste da República Democrática do Congo, capturando diversas cidades, vilas e a capital da província de Kivu do Norte, Goma. Estimativas da Organização das Nações Unidas (ONU) colocam o número de mortos nos poucos dias de conflito na casa dos 900.
Em resposta a essa escalada de tensões, a ONU trocou o comandante das forças militares da Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUSCO), substituindo o senegalês Khar Diouf pelo general de brigada brasileiro Ulisses Mesquita Gomes.
À Sputnik Brasil, o especialista em estudos de construção da paz e democratização pós-conflitos na República Democrática do Congo e guerra e paz na África Laurindo Tchinhama afirma que a escolha do novo comandante tem relação com o histórico do Brasil de atuação em missões de paz e, especificamente, na RDC.
Este é o sexto general brasileiro a liderar as forças de paz da MONUSCO e, em 2013 — quando o Brasil assumiu pela primeira vez o comando militar da missão —, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz conseguiu expulsar o M23 do país. Esta foi a primeira vez que as forças da ONU foram autorizadas a participar ativamente dos combates.
"Então há uma crença nessa experiência do Brasil no campo da operação, que vai ter o mesmo sucesso."
A derrota do M23 no período inicial da missão, mais de dez anos atrás, não foi a única colaboração brasileira para a MONUSCO, detalha Tchinhama, que atua como professor doutor substituto na Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).
Com um efetivo de 15 mil militares — no auge esse número superou os 20 mil —, o Exército Brasileiro também foi solicitado a compartilhar sua expertise de combate na selva e treinar os soldados congoleses.
Brasil tem tradição em missões de paz
Mesmo sem enviar tropas desde 2020, há uma demanda muito grande da ONU pela participação brasileira na MONUSCO, resultado da grande tradição que as Forças Armadas brasileiras têm em participar das missões de paz.
"O Brasil contribuiu com tropas desde UNEF I com o Batalhão Suez em 1957", disse Guilherme Moreira Dias, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares da ECEME e Coordenador do Laboratório de Pesquisa em Operações de Paz (LABPOP/ECEME), em entrevista à reportagem.
"Estivemos presentes com tropas em Angola, Moçambique, Timor-Leste, Haiti e Líbano, fora as contribuições individuais com observadores militares."
A presença brasileira, contudo, não traz benefícios somente para os países em crise. Participar das missões de paz também dá aos militares brasileiros uma oportunidade de "se aprimorarem continuamente e entrar em contato com novas ameaças e tecnologias", diz Moreira.
Graças a seu histórico de décadas atuando em missões do tipo, hoje o Brasil é referência internacional no treinamento de militares, policiais e civis que atuam em operações de paz. "A participação com tropas foi fundamental para termos um centro de formação com o Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil (CCOPAB)", explicita o professor da ECEME.
"E isso se reflete no reconhecimento que o Brasil possui, na demanda pela participação de brasileiros nesse tipo de missão, em especial em posições de liderança."
Solução à vista?
O general Ulisses Mesquita Gomes mal teve tempo de chegar na RDC e um cessar-fogo foi negociado entre os rebeldes da Aliança do Rio Congo, do qual o M23 faz parte, e o governo de Félix Tshisekedi.
Laurindo Tchinhama, que é também membro da Rede de Pesquisa em Paz, Conflitos e Estudos Críticos de Segurança (PCECS), analisa que esse posicionamento dos rebeldes logo após a captura de Goma representa uma "postura estratégica" e visa a reorganização do grupo e, ainda, "talvez começarem a pensar a possibilidade de negociação".
Moreira Dias, por sua vez, recorda que o braço militar da MONUSCO foi criado como forma de estabilizar a escalada da violência e, a partir disso, "agir como um catalisador do processo político de negociação entre RDC, Ruanda, Uganda e demais países da região".
Sem esse processo político, diz o professor de ciências militares, "a crise não vai ser solucionada". A fala de Moreira, que cita os países vizinhos à RDC, manifesta um aspecto fundamental sobre a crise política no Congo: o problema não se restringe às fronteiras do país.
General Santos Cruz, comandante da força militar da MONUSCO, em Kinshasa, República Democrática do Congo em 4 de junho de 2023.
© flickr.com / MONUSCO/ Myriam Asmani
'O gatilho da África'
Fazendo divisas com nove países das distintas regiões africanas: central, austral, ocidental e oriental, fronteiras maleáveis e uma vasta riqueza mineral — da qual rebeldes se utilizam para financiar suas campanhas —, a República Democrática do Congo tem a possibilidade de desestabilizar todo o continente com seus conflitos.
"Como foi dito pelo panfricanista Franz Fanon, se o continente africano tem o farto de uma arma, o Congo é seu gatilho", diz Cristhoffer Antunes Dondi Kapuwa, mestrando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa Maria e pesquisador no GECAP (Grupo de Estudos em Capacidade Estatal, Segurança e Defesa), em entrevista à Sputnik Brasil.
Isso fica evidente pela atuação direta de militares africanos. Segundo a ONU, cerca de 4 mil tropas de Ruanda auxiliaram os rebeldes na investida de janeiro, fato que é negado por Kigali. Já Burundi disponibilizou suas forças ao lado da RDC para impedir o avanço do M23.
Estes, contudo, não são os únicos países envolvidos. Além dos militares servindo na MONUSCO, a África do Sul, Malawi e Tanzânia enviaram sua própria missão de paz através da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC, na sigla em inglês).
Em outro viés, Angola e Quênia vêm tentando construir pontes entre a RDC e Ruanda de modo a alcançar um diálogo para a paz. Dessa forma, aponta Kapuwa, o Congo é um exemplo do que se chama de "guerra por procuração". Cada um desses países tem algum interesse no conflito congolês.
Para alguns, como Burundi, que entrou diretamente no conflito, Angola e Quênia, o objetivo é trazer estabilidade para a região dos Grandes Lagos africanos. Já Uganda e Ruanda "têm sido utilizadas como caminho de transporte dos recursos minerais que são explorados pelos grupos rebeldes".
Este último ainda tem motivações étnicas para agir. Paul Kagame, presidente ruandês, é de origem étnica tutsi, a mesma dos rebeldes do M23. O movimento, que ressurgiu nos últimos anos, revindica a aplicação dos últimos termos de cessar-fogo, em especial sua integração nas instituições governamentais congolesas.
"O próprio presidente Kagame, em entrevistas recentes, frisou que o Congo continua a ser um território que todos querem sem saberem o porquê, e com isso acaba por ser mais um território de exploração, de pilhagem e de projeção de interesses econômicos e políticos", afirma Kapuwa.
Claro que o discurso de Kagame, parte interessada, deve ser visto também com descofiança, ressalta o pesquisador do GECAP, mas ele expõe que "esse problema dificulta as possíveis tentativas de solução intra-africana."
No entanto, os três especialistas consultados são adamantes em afirmar que a solução para a crise na RDC demandará que todas as partes sentem à mesa de negociação. "É política", diz Kapuwa.
Retornando para o tema do Brasil, Tchinhama afirma que com a chegada do cessar-fogo, o papel do general Ulisses Mesquita Gomes será o de "criar o cenário de negociação política para o fim do conflito".
Nesse sentido, por ser um ator brasileiro — representando a ONU —, mas estrangeiro às partes interessadas, dá a ele uma vantangem para agir e criar as condições necessárias para a paz. "O componente militar apoia o braço político, mas não resolve negociações", resume Dias Moreira, professor da ECEME.
"Sem a construção de um acordo que contemple as demandas de segurança e desenvolvimento dos países dos Grandes Lagos, a tendência é que nós tenhamos alguns hiatos de estabilidade em meio a reincidência de conflitos."