Panorama internacional

'População de origem russa tenta não ser percebida', diz historiador que esteve nos Países Bálticos

Apesar do passado soviético e de terem o russo como língua materna de grande parte de sua população, Estônia, Letônia e Lituânia, que compõem os Estados Bálticos, adotam uma série de ações antirrussas e alinhamento automático com Bruxelas. Por que essa postura tem sido mantida e o que esses países ganham com isso?
Sputnik
Em entrevista ao Mundioka, podcast da Sputnik Brasil, Maria Eduarda Carvalho de Araujo, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e membro fundadora do Centro de Investigação em Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético (CIRE) afirma que, para entender a russofobia que toma conta dos Estados Bálticos, é preciso retomar memórias da Segunda Guerra Mundial.
A pesquisadora recorda que, com o pacto Molotov-Ribbentrop, de 1939, que continha um protocolo entre a Alemanha e a União Soviética que buscava estabelecer zonas de influência, os Países Bálticos ficaram sob a zona de influência soviética. Posteriormente, à revelia do acordo, os três Estados seriam invadidos pela Alemanha em 1941 e mantidos sob o regime nazista até 1944, quando os alemães foram expulsos do território.
Ciência e sociedade
No mar Báltico, pesquisadores descobrem planta marinha mais antiga do mundo, com 1.400 anos
Araujo considera que a região tem "uma história bastante conturbada de ocupação" e que o ideário russofóbico pode ser herança de um período que, segundo ela, é "muito mencionado sobre as tragédias históricas, ou seja, remonta-se muito às questões de deportações".
João Cláudio Pitillo, analista internacional, historiador e autor do livro: "Aço vermelho: os segredos da vitória soviética na Segunda Guerra Mundial", por sua vez, refuta a ideia de domínio soviético sobre os Bálticos, ponderando que todos os países tinham cidadãos que faziam parte do Exército Vermelho, que lutou contra o fascismo.

"Dizer que foram os russos que invadiram esses países e ali impuseram um sistema político, isso é uma fantasia, porque os processos políticos que colocaram esses três países, os Estados Bálticos, e aí já a Ucrânia e depois a Polônia, com o fim da Segunda Guerra Mundial, tinham grandes quantidades de nacionais, e que eram a maioria. Por isso que triunfaram", afirmou.

O analista ressalta, inclusive, que as transformações quantitativas e qualitativas dessas sociedades aconteceram a partir da União Soviética.

"Foi o socialismo levado pela União Soviética que desenvolveu esses três Estados, porque, antes do poder soviético, esses países eram extremamente pobres, essencialmente agrários, e todos eles comandados por uma elite latifundiária que mantinha os agricultores e os trabalhadores no sistema de servidão", acrescenta.

Propaganda russofóbica faz barulho nos Países Bálticos

Pitillo esteve na Lituânia no ano passado e contou, durante a entrevista, episódios que presenciou de russofobia no país.

"Vi uma sociedade que vem sendo instigada pelo seu governo e pela União Europeia/OTAN a ser extremamente hostil à Federação da Rússia, a Belarus e à cultura desses países", relatou.

As fronteiras, antes francas, também já não existem mais. "Vi que esses Estados estão murados com cercas elétricas, torres de vigilância, minas, e com uma hostilidade fora do comum a tudo que vem da Rússia, inclusive o turismo", contou, afirmando ter sido essa uma das coisas que mais o chocaram durante a presença no país.
Operação militar especial russa
'Embriaguez russófoba': afirmações de Kallas sobre civis russos merecem dura crítica, diz Moscou
Segundo o analista, vivenciar isso foi sentir um "misto de assustado e tristeza de ver como a população desses três países, dos Estados Bálticos, vem sendo sistematicamente bombardeada com uma propaganda russofóbica e como essas sociedades estão se tornando lenientes com o fascismo e completamente autoritárias com o povo russo".
Esse comportamento antirrusso, conforme Araujo, precede 2004, quando se deu a adesão dos Estados Bálticos à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). No entanto, essa retórica anti-Rússia "veio se intensificando principalmente após 2022", após o início do conflito na Ucrânia.

Impacto da russofobia sobre as minorias russas nos Estados Bálticos

Araujo recorda que a forma como esses Estados tratam as minorias russas nos países é bastante sensível. Na Lituânia, por exemplo, sanções foram impostas aos russos em 2023, "dificultando a entrada desses cidadãos no país. Isso faz com que haja discussões sobre discriminação", conta a pesquisadora.

"A Estônia tem bastante russos no país, só que muitos desses russos não são cidadãos, e isso faz com que eles não participem da vida política nesse país. Isso faz com que eles estejam também em risco de pobreza, quando comparados com a média dos estonianos", acrescenta.

Ao contar outra experiência na Lituânia, Pitillo recorda ter passado por um mercado de rua para comprar objetos antigos, quando se deparou com diversos apetrechos que remetiam ao nazismo — mas eram proibidos objetos alusivos à União Soviética.

"Em tese, dizem que criminalizaram os dois, que são proibidos os dois. Mentira! Você vê símbolos que remetem ao fascismo em toda a cidade, a todo momento", ressalta.

Panorama internacional
Russofobia é critério para adesão à UE, diz MRE russo
O historiador também revela que a discriminação nos Países Bálticos ainda é muito grande e que existe um tratamento diferenciado para pessoas de origem russa. "A população de origem russa, ela hoje tenta não ser percebida. Ela procura estar muito disfarçada, muito quieta, porque eles não podem fazer nenhuma menção mais efusiva à sua origem, porque isso é visto como algo criminoso."
Após o conflito na Ucrânia, as hostilidades aumentaram ainda mais, segundo ele. "Para você ter ideia, para cruzar a fronteira de Belarus para a Lituânia, ou vice-versa, é um processo que pode demorar às vezes um dia inteiro", conta.

OTAN: por que os Países Bálticos aderiram à aliança?

Estônia, Letônia e Lituânia ingressaram na Aliança Atlântica em 2004. Araujo percebe essa entrada como complexa, tendo como pano de fundo a suposta ameaça russa aos Países Bálticos.
Apesar de "tanto o [Vladimir] Putin [presidente russo] quanto outros assessores sempre deixaram claro que não era a intenção, nunca foi a intenção da Rússia invadir esses Estados, é um medo que é bastante real por parte dos Países Bálticos", explica a pesquisadora, acrescentando que a OTAN é vista como um apoio militar que pode prestar assistência a eles.
Panorama internacional
Mídia: Países Bálticos pedem à UE para aumentar em 2 vezes gastos com defesa
Pitillo, por sua vez, entende que a entrada desses países na União Europeia e na OTAN visa a essencialmente colocá-los como "Estados ofensivos, cabeças de ponte contra a Federação da Rússia, porque eles não ganharam absolutamente nada".

"Eles passaram a ser cães de guarda da OTAN na região, colocando-se de forma muito hostil contra a Federação da Rússia", completou.

Situação entre as nações pode arrefecer?

Para o analista e historiador João Cláudio Pitillo, a situação pode ser revertida, e "a vitória russa na operação especial na Ucrânia é muito importante, porque, de um ano para cá, as pessoas que apoiavam a guerra na Europa diminuíram".
Além disso, o especialista afirma que a animosidade tem cansado a sociedade, que percebe que "essa coisa de 'Vladimir Putin ditador', 'Rússia vai invadir a Europa', 'Rússia é malvada' não passa de uma retórica. […] A população se cansa disso, porque está vendo que milhares e milhares de euros estão sendo enfiados em uma guerra contra alguém que em tese era inimigo, inimigo esse que está vencendo a guerra e não está fazendo maldade com eles. E a sua condição material está piorando devido às crises", argumenta.
Acompanhe as notícias que a grande mídia não mostra!

Siga a Sputnik Brasil e tenha acesso a conteúdos exclusivos no nosso canal no Telegram.

Já que a Sputnik está bloqueada em alguns países, por aqui você consegue baixar o nosso aplicativo para celular (somente para Android).

Comentar