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Investimento da China na Líbia: onde outros enxergam crise, Pequim vê oportunidades, notam analistas

© AP Photo / Sergei GuneyevXi Jinping, presidente chinês, durante cerimônia de assinatura com o presidente russo, Vladimir Putin, no Grande Salão do Povo, em Pequim. China, 16 de maio de 2024
Xi Jinping, presidente chinês, durante cerimônia de assinatura com o presidente russo, Vladimir Putin, no Grande Salão do Povo, em Pequim. China, 16 de maio de 2024 - Sputnik Brasil, 1920, 23.05.2024
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Considerada um Estado falido, a Líbia pós-Primavera Árabe está mergulhada em uma crise econômica e política. Apesar disso, a China permanece investindo pesado no país. À Sputnik Brasil, analistas apontam que a abordagem reflete a estratégia de Pequim de expandir com sucesso sua influência em países considerados arriscados.
Devastada pela Primavera Árabe, a Líbia é considerada hoje um Estado falido, mergulhado em crise econômica, disputas políticas e insegurança alimentar. Segundo dados do Banco Africano de Desenvolvimento, pelo menos 800 mil pessoas necessitam de assistência humanitária no país e a taxa de desemprego gira em torno dos 20%.
Para muitos países, tal cenário faz da Líbia um destino bastante improvável para investimentos, mas não para a China, que permanece investindo pesado. Em abril, o governo líbio deu sinal verde para simplificar os procedimentos para a entrada de empresas chinesas que pretendem atuar no país em setores que vão desde a produção de petróleo a cerâmica.
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas explicam por que a China se mantém interessada em um Estado em crise, que benefícios a Líbia oferece a Pequim e como o avanço da influência chinesa no país altera o xadrez geopolítico no Oriente Médio.
Homens sírios carregam sacos de pão na cabeça enquanto caminham de volta para suas casas no bairro de Bustan al-Qasr, no leste de Aleppo. Síria, 20 de janeiro de 2017 - Sputnik Brasil, 1920, 15.05.2024
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Bruno Huberman, professor de relações internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), afirma que atualmente "a China é um dos únicos países do mundo com capacidade de investimento".

"Porque a China tem superávit gigantesco na sua balança comercial, e isso permite ao país ter um capital gigantesco para investir em outros países, diferentemente dos Estados Unidos, que é a maior economia do mundo ainda de alguma forma, mas por ter um déficit gigantesco, é um país que sobrevive principalmente vendendo títulos do Tesouro americano, que traz investimentos. Ou seja, os Estados Unidos não investem mais no mundo, quem investe é a China."

Ele acrescenta que o caso líbio é uma excelente oportunidade para investidores chineses, que também traz benefícios para a Líbia.
"Os líbios estão precisando de investimento porque a Líbia, historicamente, é um dos maiores produtores de petróleo do mundo; por isso que aconteceu o que aconteceu na Líbia. Só que a profundidade dos problemas que se deram ali não permitiu que as empresas privadas ocidentais se tornassem detentoras da extração, da produção, do refino do petróleo líbio", explica.
Segundo o especialista, isso levou a China a elevar sua presença tanto na Líbia quanto em outros países da África e da Ásia.

"Isso, do ponto de vista chinês, é uma oportunidade de negócios […]. E os chineses não são investidores que historicamente têm buscado manipular a política interna dos países onde eles investem, […] eles respeitam a soberania política", aponta o especialista.

Como China e Rússia na Líbia afetam o xadrez político no Oriente Médio?

Huberman destaca que a China não é o único país que busca aumentar a influência na Líbia, que "tem permitido uma crescente influência militar e política russa". Segundo ele, o aumento da presença militar da Rússia e econômica da China tem reflexos para além da Líbia e pinta um cenário no qual países do continente africano se sentem mais à vontade para exercer sua autonomia fora da esfera de influência do Ocidente, sobretudo de antigas metrópoles, como a França.
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"Então os países ocidentais não são a única alternativa. Você tem esse bloco oriental, que tem esse consolidado […], formado entre Rússia e China e outros países, que permite um apoio militar-econômico, russo militar e chinês econômico, que permite uma crescente autonomia para esses atores tomarem as suas próprias decisões, e [você tem] as disputas políticas ocorrendo de uma forma mais autônoma, sem uma interferência tão gritante dos países ocidentais, como vinha sendo. Porque uma interferência dos países ocidentais, como eles historicamente fizeram, significaria confrontar os chineses e russos", explica.

"Então a gente tem visto essas transformações na África de uma forma bastante significativa nos últimos anos. Essa é a principal mudança política que a crescente presença russa e chinesa em outras partes da Ásia e na África tem causado, uma crescente autonomia. Se isso vai significar uma resolução da questão líbia, isso já é outra história", acrescenta.

A opinião é compartilhada por Luis Haroldo Santos Junior, doutorando em estudos estratégicos internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que destaca que o interesse da China na Líbia é anterior à Primavera Árabe.
"Até a eclosão do conflito civil, Pequim era um dos maiores investidores do país, com investimentos estimados em cerca de US$ 20 bilhões [quase R$ 103 bilhões] por meio da atuação de dezenas de companhias. Além de ter uma atuação destacada em vários setores da economia, como infraestrutura, a China importava elevadas quantidades de petróleo, sendo a Líbia, na época, um importante fornecedor desse insumo para a economia chinesa. Com o início da guerra civil líbia, porém, muitos desses investimentos tiveram de ser suspensos, dada a retirada de companhias da região e a evacuação de mais de 30 mil trabalhadores chineses."
Ele acrescenta que o movimento de Pequim hoje visa retomar esses investimentos e assegurar que suas companhias estejam presentes nos esforços de reconstrução da Líbia no cenário pós-conflito civil. Nesse contexto, ele afirma ser interessante analisar a estratégia pragmática e de longo prazo da China.
"Apesar de ser uma estratégia arriscada, dada a instabilidade pela qual o país ainda passa, a China considera que a celebração de contratos agora pode angariar ganhos econômicos no futuro. Essa estratégia tem precedentes, como pode ser verificado em relação à sua aproximação com Angola, Iraque e Sudão no início dos anos 2000. Em Angola, Pequim celebrou uma série de contratos para a reconstrução da infraestrutura do país, que acabava de sair de uma guerra civil. No caso do Iraque, após a invasão dos EUA em 2003, o cenário de instabilidade não impediu que a China firmasse acordos para a exploração de petróleo no país, culminando em contratos celebrados com o governo local em 2008", explica.
"No Sudão, apesar de este Estado ter sido considerado um 'pária' internacional no início do século XXI, a China reforçou seus laços com as autoridades locais e investiu no setor energético do país, ajudando a recuperar a capacidade de exportação desse insumo [petróleo]. Em todos esses casos, a estratégia chinesa rendeu benefícios, ao assegurar acordos de construção física e garantir o suprimento de petróleo para sua economia, que se encontrava em plena expansão", complementa.
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Segundo o especialista, o que sustenta a política da China de investir em países considerados arriscados "é sua estratégia de internacionalizar suas empresas, a partir da virada do século XX para o XXI".
"No âmbito dessa estratégia, um dos objetivos seria garantir acesso a recursos naturais e energéticos que pudessem sustentar a economia chinesa em rápida expansão, momento em que o petróleo passou a ser considerado um assunto de relevância para a segurança nacional. Como esses países enfrentavam uma marginalização internacional em virtude da instabilidade política, havia pouco investimento ocidental. Para a China, porém, esse era o espaço deixado para que seus investimentos pudessem ser realizados, ainda que sob grandes riscos, uma vez que em outros países mais 'estáveis' as firmas chinesas encontravam mercados relativamente saturados, com pouco espaço para penetração de novos competidores."
Santos Junior também aponta que "Pequim tem logrado êxito em se colocar como um ator neutro nas disputas internas do país" e que "o pragmatismo chinês está orientado a auferir ganhos econômicos com a recuperação da estabilidade líbia, assegurando uma presença que renderá benefícios às companhias chinesas".
Ele afirma que a presença da China e da Rússia na Líbia é um reflexo de "uma progressiva expansão de influência mais ampla desses dois países no continente africano e no Oriente Médio como um todo".
"Essa maior presença oferece um contraponto à tradicional presença ocidental, cujas antigas potências ainda são acusadas de práticas neocoloniais. Se antes a maioria dos Estados árabes e africanos dependiam de apoio ocidental, agora eles podem recorrer a outros atores com ampla capacidade econômica e militar e que oferecem distintas abordagens de relacionamento. A China, por exemplo, adota uma política de não interferência nos assuntos internos de seus parceiros, evitando qualquer imposição de condicionalidades para a realização de negócios com tais países. Para as lideranças locais que se ressentem das tradicionais imposições feitas pelas antigas metrópoles coloniais, essa abordagem mais pragmática e de não interferência exerce relevante apelo."
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Ele enfatiza que para os EUA "a maior presença desses outros atores representa um risco para o controle dos recursos energéticos locais, razão pela qual os estadunidenses têm empreendido esforços para conter a expansão sino-russa no continente africano e no Oriente Médio".
"O caso da Líbia, portanto, se insere nessas disputas mais amplas, em que estão em jogo sobretudo as disputas pelos recursos energéticos do país. Embora a China tenha uma postura mais pragmática e orientada à dimensão econômica, a manutenção da estabilidade política é de vital importância para o país. Não sem razão, os conflitos locais decorrentes da Primavera Árabe forçaram a retirada de companhias chinesas da Líbia, afetando os investimentos que eram realizados na economia local."

Por que a Primavera Árabe afetou mais duramente a Líbia do que a Síria?

Huberman aponta que dos países afetados por disputas internas desencadeadas pela Primavera Árabe, os casos da Líbia e da Síria são os mais notáveis, porém "os resultados foram distintos por causa da correlação de poderes que cada país detinha".
"Ambos são países fora da órbita óbvia ocidental, mas de alguma forma foram países que após o fim da Guerra Fria e com o fim da União Soviética se aproximaram do bloco ocidental de forma significativa por sobrevivência econômica e política. Mas não foram países que se tornaram aliados fundamentais do Ocidente."
Ele destaca que a Líbia se aproximou mais do Ocidente do que a Síria, principalmente da Itália, por meio das relações entre Muammar Kadhafi (antigo líder líbio) e Silvio Berlusconi (primeiro-ministro italiano em três ocasiões, entre os anos de 1994 e 2011).

"Havia uma aproximação importante, a Líbia tinha feito reformas econômicas, privatizações, assim como a Síria, orientadas pelo Banco Mundial, FMI. Então quando os protestos surgem, como esses dois países eram dois países estratégicos importantes do ponto de vista econômico e político, a Líbia principalmente econômico, por causa da produção de petróleo, e a Síria principalmente político, pela sua influência no Oriente Médio […], foi uma oportunidade para os países ocidentais apoiarem militarmente as forças guerrilheiras opositoras, de forma a destruir os regimes."

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Ele afirma que enquanto Bashar al-Assad, presidente sírio, conseguiu reprimir os protestos internos, Kadhafi decidiu usar suas forças aéreas contra os opositores, o que abriu margem para uma ação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) no país, que "desestruturou a capacidade do governo líbio de se manter no poder e permitiu que as forças guerrilheiras, apoiadas pelos ocidentais, tomassem o poder e assassinassem Kadhafi".
"E o que se seguiu foi uma guerra civil. O que a gente vê na Líbia é uma destruição do país. A Líbia era um dos países mais urbanizados e desenvolvidos da África e do mundo árabe. E hoje em dia é um país completamente destruído, com nível de pobreza e insegurança alimentar alarmantes, insegurança política. É um desastre o que a gente tem visto na Líbia, porque o fim do governo Kadhafi abriu uma disputa por poder fratricida, e o resultado é uma manutenção da guerra civil."
Huberman acrescenta que o resultado da intervenção da OTAN na Líbia "não foi libertação e respeito aos direitos humanos do povo líbio, mas o aprofundamento do desrespeito aos direitos humanos líbios".

"Na Síria isso não aconteceu, por causa do apoio russo. Porque antes da Primavera Árabe a Rússia já vinha se aproximando um pouco mais da Síria, e a Síria tem conexões históricas com a Rússia por causa do período soviético. Essa aproximação significou um apoio fundamental do governo Assad pelo [presidente russo, Vladimir] Putin, um apoio militar, o que assegurou que Assad se mantivesse no poder."

Ele afirma que a manutenção de Assad no poder "significa que o povo sírio não sofre atualmente tanto quanto o povo líbio, porque o Estado não foi destruído".
"E o que aconteceu na Líbia é que o Estado foi destruído. Não é um Estado falido, é um Estado destruído, basicamente. Então fica essa diferença que explica por que a Líbia está desse jeito, é o país com a catástrofe mais profunda em relação ao que a gente vê como resultado das Primaveras Árabes de alguns anos atrás."
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Que oportunidades a Líbia oferece à China?

Luis Haroldo Santos Junior afirma que para além do petróleo e do gás natural, a Líbia "dispõe de amplo potencial na área de energias renováveis, em especial a energia solar", setor em que companhias chinesas têm buscado cada vez mais mercados e parcerias.

"Com efeito, a China é atualmente líder mundial em investimento em energias renováveis, sendo o país que mais produz placas fotovoltaicas no mundo. Outro setor que apresenta oportunidades para as firmas chinesas é o de construção, que deverá exigir investimentos maciços no esforço de reconstrução do país."

Em contraponto, "a […] Nova Rota da Seda oferece uma série de oportunidades à Líbia", que desde 2018 expressa intenção de fazer parte da iniciativa chinesa.
"Tendo como objetivo investir sobretudo em setores de infraestrutura que permitam melhorar a conectividade física da China com outras regiões, o governo chinês tem aportado vultosos recursos para o desenvolvimento de projetos nos países recipiendários desses investimentos. Para a Líbia, esses recursos serão fundamentais para a reconstrução de sua infraestrutura devastada pela guerra civil, antevendo que muitos investimentos deverão ser destinados para reconstruir a economia nacional. Por essa razão, as autoridades nacionais enxergam com bons olhos a inclusão do país nesse projeto chinês."
Ademais, ele aponta que, além dessas questões, um grande diferencial dos investimentos chineses, sobretudo em infraestrutura, é a velocidade com que as obras são feitas.

"As firmas chinesas se notabilizam pela rapidez na realização de seus empreendimentos, dado o vasto conhecimento técnico adquirido no próprio mercado doméstico […]. Para países com imensas necessidades de investimento e reconstrução [caso da Líbia], essa característica chinesa exerce forte apelo", diz o especialista.

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