Visita de Lula à Bolívia dias após tentativa de golpe é demonstração de apoio ao governo Arce?
A agenda acontece em Santa Cruz de La Sierra, principal centro econômico da Bolívia, após a adesão oficial do país andino ao Mercosul. Presidentes discutiram cooperação em áreas como energia, agricultura, tecnologia e exploração de minerais, com visita que também teve a presença da nova dirigente da Petrobras, Magda Chambriard.
SputnikPaís que divide a maior fronteira terrestre com o Brasil, que
ultrapassa 3,5 mil quilômetros, a Bolívia é um parceiro comercial histórico do Brasil e crucial para garantir o fornecimento de gás natural. Em mais um passo rumo ao fortalecimento das relações entre os países, o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) realiza nesta terça-feira (9) a primeira visita oficial no terceiro mandato, quando se encontrou com o homólogo Luis Arce em Santa Cruz de La Sierra, em agenda que ocorreu após a cúpula do Mercosul e que marcou a
entrada oficial da nação andina no bloco.
Dias antes, a Bolívia enfrentava uma
nova tentativa de golpe de Estado, quando uma parte das Forças Armadas tentou
invadir com tanques o palácio do governo em La Paz. Apesar de ser considerada uma ação isolada do general Juan José Zúñiga, demitido do cargo de comandante do Exército Boliviano na sequência, a situação reflete instabilidades internas tanto na economia quanto na política e ainda provocou atritos com o
presidente da Argentina, Javier Milei, que classificou o caso como uma "fraude montada". Em contraponto à liderança argentina, a visita de Lula é uma demonstração de
apoio ao governo Arce após o 26 de Junho?
Para o economista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás) Sérgio Duarte de Castro, a iniciativa do petista é importante para a estabilidade democrática do país, que terá eleições no próximo ano em meio às dissidências internas, inclusive entre a esquerda, com embates entre Arce e o ex-presidente Evo Morales.
"Essa visita é especialmente importante para a Bolívia nesse momento em que o país viveu uma tentativa de golpe militar e que vem enfrentando não apenas uma grande polarização política com a direita, mas também uma forte divisão no campo da própria esquerda, com a disputa entre Morales e Arce. A Bolívia enfrenta também uma crise cambial, levando a problemas de desabastecimento em alguns produtos essenciais, como o diesel, o que contribui ainda mais para a instabilidade política. Embora seja preciso dizer que o país, apesar de não apresentar mais os elevados índices de expansão de alguns anos, continua a crescer acima da média da América Latina e com a inflação sob controle", resume à Sputnik Brasil.
O que foram os atos de 8 de Janeiro?
No dia 8 de janeiro de 2023, uma semana depois de Lula assumir o terceiro mandato, manifestantes ligados ao
ex-presidente Jair Bolsonaro promoveram uma
invasão às sedes dos Três Poderes em Brasília, com vários registros de depredações ao patrimônio público e contestações ao resultado eleitoral. Durante a Cúpula do Mercosul, o petista chegou a comparar essa
tentativa de golpe no Brasil ao que ocorreu recentemente na Bolívia. O professor da PUC Goiás diz que a análise do presidente brasileiro é "totalmente procedente e adequada".
"Ambos os países sofreram atentados visando a abolição violenta da ordem democrática: o Brasil com a invasão da sede dos poderes em 8/1, e a Bolívia com os tanques às portas do palácio do governo em 26/6. Felizmente as tentativas foram rechaçadas, prevalecendo a democracia. Os países latino-americanos conquistaram há muito pouco tempo regimes democráticos mais estáveis e precisam estar muito atentos, denunciando vigorosamente as tentativas de ruptura, assim como punindo exemplarmente os responsáveis", defende.
Além disso, o especialista pontua que a história boliviana já registrou mais de 190 tentativas de golpe, como em 2019, quando o então presidente Evo Morales chegou a ser forçado a renunciar e foi estabelecido um governo provisório não reconhecido por países como a Rússia.
Na época,
Jeanine Añez Chávez se autoproclamou interina e, em 2022, foi condenada pela Justiça boliviana a dez anos de prisão. "O presidente Luis Arce, do partido de Morales, ganhou as eleições em primeiro turno, com 55% do votos, o que significou um retorno à ordem democrática [em outubro de 2020]. É importante frisar que a
comparação e a firme defesa da democracia boliviana não foi feita apenas por Lula no encontro. Ela foi amplamente apoiada pelos demais participantes", afirma. Inclusive para evitar atritos com um aliado antigo na América do Sul, Lula não descartou uma conversa com Evo Morales.
Já Matheus Pereira, professor de relações internacionais do Centro Universitário Belas Artes e pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Gedes) na Universidade Estadual Paulista (Unesp), destaca à Sputnik Brasil que os eventos golpistas ocorridos na Bolívia foram mais "restritos e desorganizados do que o 8/1, que teve evidente capilaridade e envolvimento de atores políticos relevantes". Mesmo assim, o encontro de Lula com Arce é, para o especialista, uma demonstração de respaldo e apoio político do governo brasileiro.
"O apoio, tanto de Lula como dos demais presidentes, é importante para reforçar a legitimidade do presidente boliviano para a consolidação de uma agenda que já se desenvolvia há alguns anos, que é a da entrada da Bolívia no Mercosul. É difícil precisar se esses apoios podem alterar drasticamente a correlação interna de forças no país, mas, do ponto de vista da política externa, são sim relevantes em um contexto de tensão política na Bolívia", pontua.
Qual a relação da Bolívia com o Brasil?
O pontapé inicial das
relações entre Brasil e Bolívia data ainda do século XIX, quando a fronteira comum foi delimitada e pacificada.
Na área comercial, os dois países possuem um intercâmbio significativo e, conforme o governo brasileiro, só no ano passado a balança totalizou US$ 3,3 bilhões (R$ 17,8 bilhões).
Além disso, cerca de 300 mil bolivianos vivem no Brasil, enquanto quase 60 mil brasileiros estão no país vizinho. O economista Sérgio de Castro lembra que a participação da nação andina nas exportações brasileiras chegou a 20% em 2003, índice que caiu para quase 15% atualmente.
"Portanto, existe um significativo potencial de crescimento das exportações brasileiras para a Bolívia no qual o Brasil está apostando. Nosso saldo comercial com a Bolívia ainda é deficitário em função da grande importação de gás, mas nossas exportações têm grandes possibilidades de crescimento. E elas são, sobretudo, de produtos manufaturados, isto é, com maior valor agregado. Além disso, existe […] um espaço importante para a expansão dos investimentos diretos externos das empresas brasileiras, que estão neste momento em um franco processo de internacionalização", diz.
O professor Matheus Pereira acrescenta que a entrada da Bolívia no Mercosul em um "momento difícil", especialmente por conta do novo governo na Argentina, também é uma mostra da força política e da capacidade de atração do bloco.
"As relações com a Bolívia já são, de modo geral, boas. Neste momento, acho que uma questão importante é trazer o Centro-Oeste e o Norte do Brasil para mais perto do Mercosul, que sempre foi muito mais forte no Sul, Sudeste. Essa aproximação pode trazer benefícios em diversos setores, seja na oferta de insumos importantes para o Brasil, seja na cooperação em infraestrutura, especialmente portos e rodovias, que são importantes no escoamento da produção dos dois países para a exportação", analisa.
Lula e Arce defendem maior integração
Após o encontro na Bolívia, Lula e Arce ressaltaram a importância de
maior integração entre os dois países. O petista classificou a nação vizinha como o "coração da América do Sul" e a qualificou como crucial para Brasília acessar o oceano Pacífico.
O presidente brasileiro ainda defendeu telefonar a cada dois meses para o homólogo e, com isso, evitar que "uma simples má vontade burocrática" não permita que os projetos em comum avancem.
"Assim como no Brasil, a democracia boliviana prevaleceu após um longo caminho entrecortado por golpes e ditaduras. Mas o que julgávamos que era o fim da estrada provou ser ainda um terreno movediço. Em 2022, o Brasil completou o bicentenário de sua independência em um dos momentos mais sombrios de sua história. Em vez de celebrar, fomos tomados por uma onda de extremismo que desembocou no 8 de Janeiro. O povo boliviano já havia provado desse gosto amargo com o golpe de Estado de 2019 e agora se viu acometido pela tentativa de 26 de Junho. Às vésperas de comemorar o seu bicentenário em 2025, a Bolívia não pode voltar a cair nessa armadilha. Não podemos tolerar devaneios autoritários e golpismos", declarou Lula.
O presidente também demonstrou apoio ao pleito da Bolívia em aderir ao BRICS e disse que vai levar a questão para a próxima cúpula do grupo, que acontece na Rússia.
"A questão da ampliação do grupo continuará a ser discutida na Cúpula de Kazan, em outubro. O Brasil vê como muito positiva a inclusão da Bolívia e de outros países de nossa região", disse.
Por fim, o petista classificou o engajamento boliviano como chave para a conclusão do conjunto de rotas que o Brasil tenta desenvolver no continente, que é chamado de Quadrante Rondon. "Com a construção da ponte binacional sobre o rio Mamoré, o transporte de bens ficará mais barato, beneficiando em particular os estados de Beni e Pando [na Bolívia] e Rondônia e Acre [no Brasil]. As propostas brasileiras para melhorar a navegabilidade no canal Tamengo e no rio Paraguai também visam a facilitar nossa conexão."
Já Arce agradeceu pelo
empenho de Lula ao apoiar a entrada do país no Mercosul e disse que, durante a campanha de 2022, encontrou-se com o petista. Conforme o presidente boliviano, todas as promessas feitas foram cumpridas. "Hoje começa uma nova era de relações exteriores, que estavam inicialmente ligadas à questão do gás. Agora, com a visão atual, sabemos que a Bolívia não é só gás, mas a integração física é importante", declarou.
Brasil e Bolívia compartilham posições políticas parecidas
Diante de governos com espectros políticos semelhantes, a exemplo de Lula e Arce, a situação favorece iniciativas de integração sul-americana e fortalecimento do Mercosul, ressalta Sérgio de Castro.
Porém, o especialista considera que posições políticas diferentes não deveriam ser empecilhos para esse processo, como ocorre atualmente com a Argentina.
"A grande voz dissonante neste momento é a do presidente argentino, Javier Milei, que já se manifestou contrário aos esforços de integração regional desde sua campanha eleitoral. Sua busca, totalmente equivocada ao meu ver, é de uma articulação solo com os EUA e a Europa. Uma das críticas mais contundentes à ausência de Milei na reunião na cúpula do Mercosul foi a do presidente uruguaio Luis Lacalle Pou, que é de centro-direita. Infelizmente, não se trata de uma questão isolada", finalizou.
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