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Brasil ainda não acordou para enorme potencial nas relações com a África, avaliam especialistas

País com a maior população negra fora da África, o Brasil sediou no último fim de semana a Conferência da Diáspora Africana nas Américas, em Salvador (BA), em parceria com a União Africana e o Togo. O evento reuniu sociedade civil, acadêmicos e governos de mais de 50 países que debateram estratégias para fortalecer as raízes africanas no mundo.
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Esta foi a primeira vez que o evento ocorreu fora do continente africano e representou um passo importante por parte do governo brasileiro na reaproximação com países do continente, após um vácuo criado no governo anterior, segundo especialistas ouvidos pelo Mundioka, podcast da Sputnik Brasil.
O presidente e fundador do Instituto Brasil África, João Bosco Monte, que participou da conferência, avaliou, no entanto, que apesar dos esforços brasileiros para reatar laços e parcerias com países africanos, ainda faltam políticas consistentes para diminuir distâncias e entraves:

"Foi um momento, nos quatro anos do anterior governo, em que tivemos um distanciamento quase que natural pela agenda internacional, pela falta de agenda internacional que o governo anterior teve […]. Então, se a gente não reposicionar o Brasil de forma objetiva, a gente não terá condição de reparar o dano ou recuperar o tempo que perdemos", opinou.

Monte, que também é professor da Universidade de Fortaleza (Unifor), com pós-doutorado em relações internacionais pela Universidade de Brasília (UnB), lembrou que o ex-presidente Jair Bolsonaro não visitou a África em seus quatro anos de mandato.

"Quando você tem um hiato tão grande nas relações de um país importante como o Brasil com o continente com quem muitos querem falar, nós precisamos entender como é que o tempo vai ajudar a reparar. Enquanto nós falamos hoje, agora, neste momento, o governo chinês convidou mais uma vez os presidentes africanos para uma reunião governamental. E isso é feito ao longo dos últimos oito anos", ponderou.

Na opinião do professor, não apenas o governo brasileiro, como também integrantes de entidades, do setor privado e a sociedade civil brasileira devem ser protagonistas no fortalecimento das relações com os diversos ambientes do continente africano.
Matilde Ribeiro, ex-ministra da extinta Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial nos mandatos anteriores do atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva, também esteve no evento e conversou com o Mundioka. Para ela, que é doutora em serviço social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professora de pedagogia da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), o Brasil ainda não logrou políticas e estratégias consistentes e permanentes em relação às relações comerciais, culturais e econômicas com a África.

"O Brasil vem se relacionando com o continente africano desde o período nefasto da escravização, porém de maneira não muito sistemática e também descontinuada. E isso não ajuda a manter intercâmbios e manter relações efetivas, sejam culturais, acadêmicas, políticas. A coisa fica sempre começando. Então eu considero que é muito importante que tenham programas, ações planejadas para serem efetivas e continuadas. […] não são firmados acordos e projetos que tenham continuidade, eles são muito pontuais."

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O presidente do Instituto Brasil África defendeu que o momento é de reconhecer os ativos que África e Brasil têm em comum, de transferência de tecnologia, de identificação de parcerias governamentais e entre companhias. Investir nesse conhecimento, segundo ele, ajuda a entender as diferentes Áfricas do continente, com 54 nações, geografias, costumes e histórias diversas.
Uma das carências fundamentais das políticas públicas brasileiras no tocante à África, segundo os especialistas, tem relação com a produção e disseminação contínua e em larga escala da história e da cultura africana. O resultado é o apagamento histórico causado pelo processo de colonização eurocêntrico e o racismo estrutural da sociedade.

"Fala-se pouco de África. De 20 anos para cá, fala-se um pouco mais, inclusive por força da Lei nº 10.639, que obriga o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira. Isso tem feito diferença no ensino em todos os níveis."

A implementação da lei, no entanto, deixa muito a desejar, pois a capacitação dos educadores é feita de maneira pontual e sem incremento por parte dos órgãos públicos, criticou a professora da Unilab.
Ela comentou ainda que no Brasil a valorização da cultura, da ancestralidade e da historicidade afro-brasileira e africana fica refém dos governantes de turno.
"Depende muito da visão dos dirigentes, das instituições, depende muito de conjunturas políticas. Por outro lado, temos que admitir que a nossa musicalidade é negra, a nossa forma de agir enquanto grupo social traz muito dos aprendizados africanos. É uma questão de admitir, de reconhecer e de colocar isso na pauta de maneira valorizada. Isso não acontece de maneira mágica, isso tem que acontecer a partir de decisões políticas e de estímulos legais e programáticos", disse ela.
Integrantes do governo brasileiro participam da Conferência da Diáspora Africana nas Américas, em Salvador (BA), em agosto de 2024

Brasil e África: nem tudo é só lamento

Apesar dos desafios e retrocessos, os últimos dois anos têm sinalizado uma mudança de postura em relação à África por parte do Brasil, com a realização de fóruns, acordos comerciais e visitas de Estado, ressaltaram os entrevistados.

"Não estamos parados, estáticos, no meio do apagamento histórico não. Existe uma mobilidade, existe uma busca. Minha crítica é apenas que essa busca já existente tem que ser mais célere e mais consciente, respaldada por leis e por ações políticas. É muito importante que ocorram atividades oficiais e, também, combinando com o processo de organização da sociedade civil", frisou Matilde Ribeiro.

Para Monte, apesar de o Brasil ter menor poder de atrair parceiros que outros países, em termos de investimento, seu diferencial é ter um instrumento natural de afinidade com a África:
"Costumo dizer que tem uma resposta tropicalizada que o Brasil dá, que esses países [grandes potências] não conseguem oferecer", comentou.
Essa afinidade, ressaltou, engloba realidades históricas parecidas de colonização e escravidão, desigualdades sociais e desafios similares. Logo, envolve relações de empatia e solidariedade.
Ele mencionou a transferência de tecnologia em diversos setores como instrumento relevante de soft power, "que ignoramos, e entendo que nós perdemos tempo".

"A transferência de tecnologia pode acontecer de forma solidária, mas as empresas de um lado e outro precisam conversar para que no final quem produz aqui no Brasil possa eventualmente produzir no outro espaço africano, sozinho ou em parceria com nacionais desses países."

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Monte citou ainda potenciais parcerias comerciais, como a venda de aviões da empresa brasileira Embraer e a troca de conhecimento sobre o desenvolvimento dos diferentes modais de produção de energias renováveis, produção de medicamentos, entre outros.

Relações entre Brasil e União Africana

A conferência produziu a carta de recomendações que foi entregue à União Africana e vai municiar os debates do 9º Congresso Pan-Africano, com data para ocorrer de 29 de outubro a 2 de novembro, em Lomé, capital do Togo.
A carta foi construída em torno de quatro eixos: pan-africanismo, memória, reconstrução, reparação e restituição.

"Cada país africano, e os que estão fora da África, tem uma política própria de fazer as suas ações, de reparação, de entrega de ativos. Houve uma discussão interessante, acalorada até, como algumas nações. Por exemplo, nações europeias vão entregar para os Estados africanos bens que foram retirados, que foram usurpados ou foram roubados", contou Monte. "Nessa reunião em Salvador houve uma série de recomendações para que esse passivo ou esses passivos possam ser, de uma forma mais simples, resolvidos."

Ele acrescentou que as conversas foram muito positivas e que alguns consensos foram alcançados.
A ex-ministra também celebrou o resultado da conferência.

"No fazer da agenda da política pública brasileira, mesmo havendo a intenção de trazer a questão africana para o centro, isso acaba se perdendo diante do conjunto de demandas e de prioridades […]. Para fazer valer essas promessas mais e mais, tem que ter uma sociedade civil ativa, tem que ter um movimento social batendo na porta. E essa conferência ocorrida aqui em Salvador é um exemplo disso. Há muito tempo não encontrava pessoas e instituições favoráveis à agenda africana, favoráveis à política de aproximação Brasil-África", comemorou ela.

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