Escalada de violência na RDC tem raízes no genocídio em Ruanda, notam analistas
18:58, 14 de fevereiro 2025
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas analisam o que está por trás da crise entre a República Democrática do Congo e Ruanda.
SputnikA ministra das Relações Exteriores da República Democrática do Congo (RDC), Thérèse Wagner, afirmou recentemente que as Forças Armadas ruandesas lançaram uma ofensiva sem precedentes no leste do país, o que representa uma violação da soberania e uma "declaração de guerra".
Tanto a RDC quanto a Organização das Nações Unidas (ONU) acusam Ruanda de apoiar os rebeldes da milícia da etnia tutsi
Movimento 23 de Março (M23), mas o governo ruandês nega. Por outro lado,
ativistas acusam o Ocidente de estar por trás dos ataques à RDC.
Ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, Charly Kongo, professor de francês refugiado há mais de 15 anos no Brasil, explica que o conflito atual começou há mais de 30 anos, como reflexo do genocídio em Ruanda, quando ruandeses da etnia tutsi foram massacrados por conterrâneos da etnia hutu. Ele afirma que, após o genocídio, tanto tutsis quanto pessoas próximas de hutus que participaram do massacre se refugiaram na RDC. Porém, entre os refugiados, também entraram no país muitos hutus que foram partícipes do genocídio.
"Então a guerra é uma consequência do genocídio ruandês, do genocídio tutsi, que aconteceu em 1994. E depois desse genocídio, a população, a etnia em relação próxima com os genocidários, fugiu para o Congo. […] Foram mais de 1 milhão de refugiados que o Congo recebeu. Desde aquela época, em 1994, o Congo não está mais em paz", afirma.
Somado a isso, em 2009 ocorreu a formação do M23, segundo Kongo, com o apoio de Ruanda, que em 2022 lançou uma ofensiva contra a RDC, aproximando-se da cidade de Goma, capital da província de Kivu do Norte. Na semana passada, a cidade foi conquistada pela milícia. Kongo afirma que a tomada de Goma pelo M23 foi feita com participação de soldados das Forças Armadas ruandesas e que a cidade foi justamente a que mais recebeu refugiados ruandeses após o genocídio.
"É uma cidade que foi conquistada apenas na semana passada por aquela milícia que se chama M23, junto com os soldados das Forças Armadas ruandesas. Então eles usam uma brutalidade muito forte contra a população local. Infelizmente, também o governo congolês não consegue organizar o Exército congolês para defender o país. E, também, a mesma cidade de Goma, que tem aproximadamente 1 milhão de habitantes […] é a mesma cidade que recebeu quase 1 milhão dos deslocados [de Ruanda]. […] Não é uma coisa que começou ontem, não, que começou na semana passada, não. Já existe há muito tempo."
Ele afirma que há ainda a presença da milícia ruandesa Forças Democráticas de Liberação de Ruanda (FDLR), formada por filhos dos hutus partícipes do genocídio que fugiram para a RDC. Essa milícia, afirma o especialista, é contra a nação ruandesa.
"Essa milícia que se chama FDLR, Forças Democráticas de Liberação de Ruanda, é uma ameaça para o governo ruandês. Então eles tentam eliminá-los, e por causa disso também que eles são um pretexto para o governo de Ruanda invadir o Congo."
Segundo Kongo, a guerra não é apenas étnica, mas por recursos naturais, como água e minerais como o coltan, muito usado na fabricação de celulares e computadores.
"O Congo tem uma reserva de 80% desses minerais […]. Então esse mineral [coltan] é muito precioso mesmo, muito importante para a fabricação das baterias de celular. Dizem que ele que regula a temperatura para a bateria não ficar muito quente. Então é por causa disso tudo. Tem também a implicação dos países vizinhos do Congo, principalmente Ruanda, que desestabiliza o Congo para fazer o comércio ilícito desse mineral que é o coltan e outros minerais lá naquela região", afirma.
Questionado sobre por que
o conflito na RDC não tem presença ampla nos noticiários, como outros conflitos vigentes, Kongo afirma que
"infelizmente a África toda é esquecida".
"Poderia ser Angola, poderia ser Zimbábue e tal; não fariam os grandes títulos dos jornais. Então são quase todos os países da África. Eu acho que o mundo ocidental é mais interessado no que toca ao povo ocidental. Tipo assim, no Oriente Médio, se isso tem a ver com os israelenses, que a maioria tem essa cultura ocidental. Então isso mobiliza mais a imprensa do Ocidente. O Brasil também tem essa visão ocidental, apesar de ser na América Latina. Então eu acho que é isso, é que a gente não é ocidental, então a gente não toca a sensibilidade de muitas pessoas."
A RDC é um país que historicamente tem dificuldade em manter o monopólio da violência, do ponto de vista de construção de Estado. É o que aponta ao podcast Mundioka o doutor Laurindo Tchinhama, professor substituto na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Gedes), membro da Rede de Pesquisa em Paz, Conflitos e Estudos Críticos de Segurança (PCECS) e especialista em estudo de construção da paz e democratização pós-conflitos na República Democrática do Congo.
"Quando olhamos a história do próprio Congo, do ponto de vista da construção do Estado, é um Estado que tem uma debilidade muito enorme de ter o monopólio da violência no país como um todo […]. Temos um país, então, que não consegue ter esse monopólio, e isso vai levar a uma luta constante por domínio dessas regiões", explica.
Segundo ele, a disputa pelos recursos naturais do país levou à criação de mais de 100 milícias além do M23 e das FDLR.
"Muitos grupos estão surgindo ao longo do Congo. Estimamos que tem mais de 100 grupos ao redor do Congo, todos querendo uma parcela desses recursos naturais que são explorados de forma ilegal. Por outro lado, podemos também apontar, do ponto de vista da gestão pública, que muitos líderes políticos congoleses fazem vista grossa aos recursos naturais, são corrompidos por empresas multinacionais que, muitas vezes, exploram esses recursos de forma ilegal."
30 de setembro 2024, 20:18
Questionado sobre se há o risco de a situação na RDC levar a uma forte desestabilização na África, Tchinhama descarta a possibilidade, embora ressalte que há países vizinhos da RDC preocupados com esse possível cenário, como o Burundi e a Tanzânia.
"Hoje o Burundi tem mais de 10 mil soldados na fronteira com o Congo, justamente com esse medo de que vai ter violência. A Tanzânia também já tem um contingente militar […] para justamente acompanhar o comportamento de Ruanda. Inclusive o presidente do Burundi alegou que há uma possibilidade, sim, de uma guerra regional. E, por outro lado, a Angola tem atuado também na região para mediar os conflitos, sobretudo nos processos de Ruanda."
Ele afirma acreditar que as negociações vão avançar, mas diz que para isso é preciso que haja um movimento ainda maior para além da região, com participação de atores internacionais.
"Podemos também colocar aqui atores internacionais, como a própria União Europeia, que é um grande parceiro de Ruanda, porque a União Europeia apoia Ruanda na missão em Moçambique, lá em Cabo Delgado. Então Ruanda é um dos países que estariam na missão em Moçambique. Talvez algumas medidas também internacionais, algumas sanções contra Ruanda, ajudariam a evitar essa possível escalada. Mas claro que tudo isso vai depender de como vão correr as negociações", afirma.
Tchinhama lamenta que não haja um movimento internacional em prol da RDC, e diz que a vida da população do país é menosprezada pela comunidade internacional.
"A gente vê que alguns conflitos têm mais visibilidade, talvez por serem de países onde os interesses e as grandes potências são mais visíveis a olho nu, mas os países africanos também merecem esse destaque a nível mundial e também uma ação internacional de maneira mais categórica e firme."
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