Os corredores do Centro Hospitalar da Cova da Beira, na cidade de Covilhã, região central de Portugal, conduziram a brasileira Mariana Panaro a um pequeno consultório onde, pela primeira vez na vida, poderia falar em aborto livremente. Foi em 2008, Mariana tinha 29 anos e Portugal completava o primeiro aniversário da legalização da interrupção da gravidez por opção da mulher.
Foi nesta unidade que atendeu, ao longo de nove anos, mulheres dos mais variados perfis. Ginecologista e obstetra natural de São Paulo, Mariana levou para Portugal lembranças marcantes causadas pela ilegalidade do aborto no Brasil.
"Lembro-me de ver uma adolescente, no hospital de Cotia, devia ter 17 anos, que ouviu falar que permanganato de potássio era bom para abortar. É uma substância utilizada antigamente pelos dermatologistas para secar lesões de pele. É ácido, então as mulheres enfiavam no fundo da vagina e tinham a ilusão de que seria abortivo. Lembro-me dessa menina chegar e sangrar muito, estava entrando em choque. Quando examinamos, vimos que ela tinha um buraco na parede da vagina. Se ela não fosse atendida, morreria grávida, porque aquilo não é abortivo. Ela estava se esvaindo em sangue e foi muito marcante. Qual a necessidade de uma pessoa ter que fazer isso?", se pergunta a interlocutora da Sputnik.
Mariana se mudou para Portugal em 2007, ano em que o país realizou um referendo nacional com a pergunta: "Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada por opção da mulher, nas 10 primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?". Mais de 59% dos portugueses votaram a favor e a nova legislação entrou em vigor no mesmo ano.
"Quando comecei a trabalhar, meu chefe perguntou logo se eu era a favor ou contra [o aborto]. Ele estava preocupado, porque o médico que fazia com ele não ia sempre e os outros todos já diziam que eram contra e não fariam", lembra a médica.
"Quando a gente faz muito plantão lá no Brasil, a gente vê toneladas de mulheres que fazem aborto ilegal, que enfiam agulhas, varas, que chegam ao hospital em choque hemorrágico, com intestino a sair pelo colo do útero. Então de tanto ver isso por lá, chegar aqui e ser legalizado, das mulheres não correrem riscos, foi algo libertador", conta Mariana.
Legalização e redução
Em 1997, a lei foi alterada. As punições continuaram, mas ampliou-se o prazo para o aborto nos casos de malformação do feto (de 16 para 24 semanas) e também o conceito de estupro. A interrupção passou a ser permitida em casos de "crime contra a liberdade e autodeterminação sexual da mulher".
Em 2007, depois do referendo, o aborto por opção da mulher, quando realizado até a décima semana de gestação em estabelecimentos de saúde oficiais, deixou de ser crime.
De acordo com dados da Direção Geral de Saúde (DGS) do governo de Portugal, o número de abortos realizados no país rondava os 20 mil por ano antes da legalização. Em 2008, o registro foi de 18.615 procedimentos, 97% deles por opção da mulher. Até 2011, o número só cresceu.
A médica Ana Aroso, membro da direção da Associação para o Planejamento da Família, explica à Sputnik Brasil que a subida inicial "foi simplesmente porque passamos a conhecer os abortamentos a título oficial. Depois tivemos os anos da crise, que começou em 2008. Talvez muitas dessas gravidezes tivessem sido aceitas se não fosse a questão do desemprego nesta época".
"Há aqui vários ganhos, um deles é terem terminado os problemas de saúde da mãe quando faz a interrupção, como as perfurações dos órgãos genitais, do útero, as infecções. É todo um conjunto de melhorias que foram alcançadas ao longo destes anos", afirma à Sputnik Brasil o médico Francisco George, que chefiou a Direção Geral de Saúde de 2005 até o ano passado. Desde 2012, a mortalidade por complicações de abortos inseguros em Portugal está zerada.
Do momento em que decide interromper a gravidez até concluir o procedimento, a mulher passa por pelo menos três consultas. Na primeira, ela manifesta o interesse e é feito um ultrassom para confirmar que a gestação não ultrapassa as dez semanas. Os profissionais também avaliam se a paciente não está sendo pressionada a abortar.
"Depois existe um período de reflexão de no mínimo três dias, em que podemos disponibilizar apoio psicológico, um apoio social, de ajuda monetária quando há desemprego, caso essa seja a causa para a interrupção. No fim da reflexão há uma nova consulta. A mulher já vai ter optado se quer o regime terapêutico com medicamentos ou o cirúrgico. Habitualmente, recomendamos a primeira tentativa com medicamentos, porque é mais simples, feito em ambulatório. A medicação é dada na consulta e a segunda dose, 48 horas depois, pode ser feita no domicílio. Depois tem de haver uma terceira consulta para um acompanhamento. Temos que comprovar que houve uma expulsão completa do conteúdo uterino e falar da contracepção, sobre como evitar um novo aborto", explica a diretora da Associação para o Planejamento da Família.
O procedimento é o mesmo em unidades de saúde da rede pública ou privada, mas os perfis são bem diferentes. No sistema público, 98% dos abortos voluntários são feitos com medicamentos. Nas clínicas particulares, 97% são cirurgias.
Embora não haja distinção entre residentes e não residentes, a diretora-executiva da Clínica dos Arcos, unidade privada que mais realiza abortos no país, fala sobre o interesse existente por parte de quem ainda está no Brasil.
"Elas entram em contato conosco principalmente por e-mail ou telefone", diz Sónia Lourenço. São dois os principais fatores apresentados pelas brasileiras que vêm abortar em Portugal. "A língua, que, por ser a mesma, dá mais uma segurança, mas principalmente o anonimato, incomparável com outros locais. Aqui, ela será só mais uma na multidão a fazer turismo, ninguém vai saber o que ela veio fazer", explica a gestora.
Viajar para abortar não é novidade para as brasileiras, mas só no ano passado o tema veio à tona escancaradamente. Rebeca Silva, a primeira mulher a pedir ao Supremo Tribunal Federal para interromper uma gravidez no Brasil, viajou para fazer o procedimento na Colômbia, assistida por entidades de defesa dos direitos das mulheres, depois de ter o pedido negado.
"Cogitei realizar em qualquer país que fosse descriminalizado". No fim das contas, Taís acabou conseguindo medicamentos abortivos na própria cidade. "O número de mulheres que já realizaram procedimentos de interrupção é extremamente maior do que imaginamos. As pessoas não falam, por ser crime, por incompreensão de algumas partes da sociedade. Mas há uma grande parcela que mantém esse diálogo vivo e forma uma rede de apoio mútuo", analisa a bióloga à Sputnik Brasil.
Média abaixo da Europa
A cearense Débora* engravidou enquanto fazia intercâmbio na Irlanda, aos 22 anos, por descuido com o uso da pílula anticoncepcional. O parceiro se esquivou.
"Fiquei desesperada. Ele deixou bem claro que era responsabilidade minha lidar com a situação, independente da escolha que eu fizesse", conta Débora em uma conversa com a Sputnik.
"Pensei no que eu poderia proporcionar para aquela criança. Eu não tinha terminado a faculdade ainda, eu sabia que seria uma responsabilidade para o meu pai, que me sustentava na época, a minha avó estava com câncer. Acabei decidindo não levar adiante por não me sentir preparada e principalmente por saber que estaria colocando um peso na vida do meu pai", adianta.
Por indicação de outra brasileira, ela procurou ajuda on-line pelo projeto Women on Web, que tem sede na Holanda e facilita o acesso a medicamentos abortivos em vários países.
A facilidade para conseguir o remédio, mesmo com a legislação irlandesa sendo considerada uma das mais restritivas do mundo na época, não aliviou o peso da decisão. "Além de todo o sofrimento físico, foram horas de cólica e dor, quando expeliu, eu vi nitidamente o feto. Isso me atormentou durante muito tempo", diz Débora.
Neste cenário, Portugal tem o menor prazo para a permissão da interrupção voluntária (só até a décima semana, quando a Holanda, por exemplo, permite até as 22), mas está sempre abaixo da média europeia de abortos para cada mil nascidos vivos. Foram 204 em 2014, ano dos indicadores mais recentes disponibilizados, contra 227,96 da média da Europa.
Embora o ex-chefe da Direção Geral de Saúde afirme que "não se discute mais este direito" das mulheres em Portugal, há profissionais que fazem questão de demonstrar que são contra o aborto, declarando "objeção de consciência" para não realizar os procedimentos na rede pública. A lei assegura o direito dos trabalhadores. O resultado é, na maioria dos casos, o encaminhamento para a rede privada. Na Clínica dos Arcos, 70% dos atendimentos são encaminhamentos do sistema público, "a maioria por objeção de consciência", diz a diretora Sónia Lourenço.
A Associação dos Médicos Católicos Portugueses, que defendeu o "não" no referendo pela legalização em 2007, apoia a realização da edição deste ano da Marcha pela Vida, marcada para o próximo sábado (27) em cinco cidades do país.
O aborto segue levantando discussões mundo afora, mas a análise dos números oficiais de Portugal mostra que o procedimento é fundamental na estruturação da política de planejamento familiar do país.
"Se houve alguma medida que se tomou e que diminuiu a mortalidade materna de uma só vez, mais do que a distribuição de antibióticos, mais do que introdução de transfusões de sangue, já que a maioria das mulheres morria com hemorragias pós-parto ou com infecções puerperais, a medida que mais depressa e que por si só diminuiu a mortalidade materna foi a legalização do aborto", afirma a médica Ana Aroso à Sputnik Brasil.
De acordo com a Direção Geral de Saúde, 94% das mulheres que abortaram por opção em 2016 aderiram a métodos contraceptivos — também de graça na rede pública — depois do procedimento.
Para Ana Aroso, a situação no Brasil não pode se prolongar. "As autoridades públicas têm números para provar, do ponto de vista da saúde da mulher, que esta é uma medida que tem que ser urgentemente tomada. Não tomar é deixar morrer mulheres desnecessariamente".
*Os nomes foram alterados para preservar as identidades das entrevistadas.