Antes considerada uma região isolada de tensões, o Ártico se tornou um
ponto nevrálgico da geopolítica global. O avanço do aquecimento que derrete o gelo marítimo
desencadeou uma corrida pelos recursos naturais inexplorados da região e pelas
novas rotas que ligam América do Norte, Ásia Oriental e Europa, que prometem aumentar o escoamento de mercadorias em menos tempo e com menor custo.
Desde 2017, Rússia e China, parceiros no BRICS, mantêm o projeto da Rota da Seda no Ártico, que visa explorar rotas marítimas navegáveis da região. A parceria sino-russa também contribui para garantir os direitos soberanos da Rússia no Ártico e para conter a militarização da região por parte de países hostis.
Essa aliança desperta incômodo no Ocidente. Em outubro de 2023, o presidente do comitê militar da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), almirante Bauer, classificou como "preocupante" a parceria sino-russa.
Em entrevista à Sputnik Brasil, analistas explicam por que a parceria entre Rússia e China no Ártico deixa o Ocidente em alerta e se a disputa entre potências pode evoluir e fazer da região palco de futuras guerras.
Por que o Ártico se tornou ponto nevrálgico da geopolítica?
Fred Leite Siqueira Campos, professor e pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre a Rússia (Prorus) afirma que "o Ártico certamente será a 'fronteira final' das rotas comerciais globais". Isso porque, segundo estimativas, "a rota comercial do Ártico levaria perto de metade do tempo das rotas tradicionais".
"A viagem fica bem mais barata e será bem mais eficiente do que através do canal de Suez, como são feitas atualmente as rotas comerciais 'Ocidente-Oriente'. Somada a todas essas vantagens, […] [está a] iniciativa chamada 'Cinturão e Rota da China'. Essa rota [pelo Ártico] será a rota comercial mundial dominante quando de sua plena utilização. A Rússia, a propósito, já possui uma frota de quebra-gelos que atua no Ártico. A ideia é muito simples: vai o quebra-gelo na frente, seguido de uma série de navios comerciais."
Pedro Silva, doutorando em relações internacionais na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), afirma que o recuo do gelo marítimo "torna as passagens do Ártico viáveis do ponto de vista da navegação, ao ponto de sequer ser necessária a escolta de um navio quebra-gelo".
"A navegação é importante tanto pelo desenvolvimento da exploração de recursos no Ártico [como] por ser a forma mais barata de mover grandes volumes de mercadoria de um ponto a outro […]; figura como uma possível rota global de navegação. O interesse da China, por exemplo, é utilizar a Rota Marítima do Norte para acessar os mercados europeus com economia considerável de tempo e de dinheiro no transporte de bens."
Ele acrescenta que, do ponto de vista geopolítico, o aumento da acessibilidade fez do Ártico uma região "porosa".
"Isso é encarado como um problema potencial, uma vez que uma região que antes era considerada um escudo natural para os territórios nacionais vira um corredor global de passagem, vira um vetor potencial de invasão, por exemplo. Por isso EUA, Canadá, Rússia, Dinamarca e Noruega — países que controlam partes dessas rotas — têm investido tanto em construção de capacidade operacional no Ártico, mas também no desenvolvimento de doutrinas de emprego das forças nessas águas, nas terras próximas às passagens e no monitoramento da atividade na região."
Alana Monteiro, pesquisadora de estudos estratégicos e segurança internacional da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), explica que o interesse da Rússia pela região é antigo e data do governo de Mikhail Gorbachev, que em 1987, ainda durante a União Soviética, em um discurso em Murmansk,
apresentou propostas para estabelecer uma cooperação no Ártico.
"O estadista [Gorbachev] abordava [no discurso] a desmilitarização, assim como o incentivo à coordenação e cooperação entre Estados, destacando a importância da exploração de recursos, a busca pelo desenvolvimento e o fortalecimento nos âmbitos da pesquisa científica e da proteção ambiental, além de termos sobre a navegação marítima. Gorbachev proclamou: 'O Ártico não é apenas o oceano Ártico'. É o lugar onde as regiões do Pacífico Eurasiático, da América do Norte e da Ásia se formam, onde as fronteiras se aproximam e os interesses dos Estados se atravessam", explica a pesquisadora.
Parceria sino-russa no Ártico pode ser contraponto à presença da OTAN na região?
Pedro Silva afirma que o estreitamento de laços entre Pequim e Moscou para a exploração do Ártico se deu no vácuo deixado por empresas e bancos ocidentais após as sanções aplicadas contra a Rússia por conta do conflito ucraniano. Ele avalia que não há uma disputa entre Norte e Sul Global no Ártico, pois não considera que existe uma disputa por projetos diferentes na região, mas sim pelo direito de explorar os recursos e pelo controle de território "para alimentar e abastecer os processos de desenvolvimento capitalista de cada bloco".
"Isso é visível, em especial, quando vemos o papel da Rússia no abastecimento energético da União Europeia, ou o papel da navegação na política chinesa para o Ártico, que visa construir um corredor de escoamento de seus produtos que não dependa da passagem pelo estreito de Malaca e pelo Chifre da África", explica.
Alana Monteiro diz que a cooperação entre Pequim e Moscou no Ártico reflete a união de interesses entre duas grandes potências.
"[Vladimir] Putin via e vê a China como potencial investidor a longo prazo na NSR [sigla em inglês para Rota Marítima do Norte], principalmente pelos benefícios que ligariam a China à Europa no trânsito de cargas pela NSR. Os documentos oficiais russos sobre a estratégia para o Ártico de 2008 incluem também a realização de projetos bilaterais conjuntos com a República Popular da China no setor de energia, infraestrutura, exploração espacial e para o Ártico. A interdependência emergente dos interesses da Rússia e da China no domínio da energia e do transporte pode vir a ser um elemento-chave para o desenvolvimento do Ártico russo se essa relação puder ser mensurada em pontos positivos não somente para a Rússia, mas para os países asiáticos que também serão beneficiados com a ampliação e o desenvolvimento da rota comercial."
Já Fred Campos afirma que a parceria sino-russa certamente reflete a divisão do mundo em dois eixos: Ocidente e Sul Global.
"A divisão entre o Ocidente e o Sul Global se evidencia em todas as esferas das políticas internacionais na atualidade. Com a crescente, e cientificamente comprovada, vantagem econômico-estratégica da rota comercial pelo Ártico, os principais atores mundiais vão (e já estão) se debruçando na sua organização e estruturação. Mas aqui a Rússia tem uma grande vantagem estratégica: a parte territorial e marítima russa (na região do Ártico) é a maior de todos os países e pode ser a ponta de lança das vantagens russas na região", explica.
Entrada do Brasil no Conselho do Ártico pode levar o BRICS para a região?
Neste ano, o embaixador do Brasil em Moscou, Baena Soares, afirmou que o Brasil tem interesse em fazer parte, como país observador, do Conselho do Ártico.
Questionado sobre que impactos a entrada do Brasil no conselho, somada à parceria entre Rússia e China no Ártico, totalizando três países do BRICS, pode ter sobre a disputa na região, Silva considera "importante que os membros do BRICS estejam no conselho, não só
para defender e ecoar interesses diversos dentro dos debates e programas do Conselho do Ártico, trazendo novas perspectivas e novas preocupações, mas também como forma de coordenar esforços".
"O NDB [Novo Banco de Desenvolvimento], por exemplo, pode ser um instrumento importante para financiar iniciativas de desenvolvimento (sustentável, esperamos) na região, um provedor de fundos para adaptação e mitigação da mudança climática. E tudo isso depende do conhecimento e da capacidade de articulação dos países nesses espaços."
Ele enfatiza que a presença do BRICS não seria voltada para ser um peso militar na região, mas sim para "representar uma expansão da influência do BRICS na região, algo que pode ser malvisto pelos atores estabelecidos".
"Podemos pensar também em impactos para o Brasil. O Estado brasileiro declarou interesse na Antártica, incluída como parte do nosso entorno estratégico no Livro Branco de Defesa Nacional, por exemplo, outra região polar, bastante diferente em muitos aspectos do Ártico, mas que pode sofrer um processo semelhante de exploração e disputa territorial no futuro. Haverá um "Conselho da Antártica" quando chegar o prazo do Tratado da Antártica, em 2041? Não sabemos, mas é estratégico ter o conhecimento de como as discussões e trabalhos se desenrolam no Conselho do Ártico para pensar no futuro", complementa o especialista.
Ademais, ele afirma que o Ártico e a geopolítica dos recursos do Ártico guardam muitas semelhanças com a Amazônia, outra região internacional que tem sofrido muito com a ação antrópica e com a mudança climática e que tem recursos ainda não explorados, com um ecossistema bastante sensível e povos indígenas que podem e devem ser reconhecidos e ouvidos enquanto parte ativa da formulação e implementação de políticas e mesmo do ponto de vista da produção do conhecimento ecológico.
"Mais importante do que planejar uma entrada ou pleitear a participação é entender o porquê de querermos entrar. Qual será nossa participação objetiva nos debates? Como vamos nos posicionar? O que queremos tirar dessa participação em termos de cooperação internacional?", questiona o especialista.
Alana Monteiro afirma que "assim como a entrada da China foi bastante celebrada pela Federação da Rússia em 2013, a entrada do Brasil como possível membro observador promete o Ártico em maiores debates entre o BRICS e demais parceiros que poderão se beneficiar da ampliação dessa discussão".
"Quanto maior visibilidade ao tema, maiores atrativos ao desenvolvimento e articulação das propostas que já envolvem países asiáticos nesse espaço."
Campos tem uma visão mais cética e diz ter dúvidas sobre "se a participação do Brasil pode ter algum tipo de relevância e alterar a correlação de forças no que diz respeito às questões do Ártico".
"Isso se deve, a meu ver, a duas questões centrais: a irrelevância do Brasil no que diz respeito às questões técnicas/geográficas em relação ao Ártico; e também as posições 'vacilantes' do Brasil no cenário internacional. Se, por um lado, é certo que o Brasil é membro fundador do BRICS e, por isso, tem interesses no crescimento do bloco; por outro lado, é certo, também, a força da influência dos EUA nas políticas e decisões do Brasil. Portanto, não acredito que o Brasil mudará, com sua participação no Conselho do Ártico, o 'pêndulo' das disputas."
Por que OTAN acusa Rússia de expansionismo?
Questionado sobre a declaração do almirante Bauer acusando Moscou de expansionismo no Ártico, Silva diz que "não é que a Rússia seja expansionista", mas o país busca retomar a posição que tinha antes do final da Guerra Fria.
"A modernização militar russa, em especial aérea e naval, tem como objetivo explícito garantir a segurança e as reivindicações russas no Ártico. A Rússia pleiteia a extensão de sua plataforma continental até o Polo Norte, nos termos da convenção sobre limites da plataforma continental, e, para isso, tem desenvolvido forças navais e aéreas, bem como capacidade de monitoramento e operação na região."
Ele acrescenta que a estratégia da Rússia "joga em dois campos, tanto trilhando os caminhos da normativa internacional estabelecida, como é o caso da extensão da plataforma continental, mas também constrói capacidade militar e capacidade estatal de intervenção, monitoramento e uso dos recursos e espaços do Ártico".
"O tamanho dessa presença militar, por si só, já é visto com preocupação pelos EUA e pela OTAN. Ao mesmo tempo, a não adesão dos EUA à CNUDM [Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar] e à CLPC [Comissão de Limites da Plataforma Continental] é motivo de críticas até mesmo dos aliados, uma vez que parte da justificativa até para a existência da OTAN é a defesa de uma ordem mundial baseada em regras."
Campos sublinha que a declaração de Bauer reflete a tradicional forma de atuação dos EUA e seus aliados do Ocidente de "criar um discurso retórico, na maior parte das vezes, absolutamente falso e que esconde os seus interesses, na maior parte das vezes, obscuros, violentos, de dominação e expansão, inclusive militar".
"Aqui está muito claro: os EUA e seus aliados da OTAN estão acusando (falsamente) a Rússia (e a China) de questões e problemas que são, na realidade, criados pelos EUA e pelos países da OTAN. Os EUA sabem que a edificação e a consolidação da rota comercial pelo Ártico dará absoluta vantagem estratégica, econômica e logística à Rússia, e, portanto, do ponto de vista dos EUA (e da OTAN), todas as 'armas' devem ser utilizadas (inclusive o soft power) — que é o caso dessas falas (falsas) do almirante da OTAN."
O que garante a superioridade das capacidades militares russas no Ártico?
Um artigo publicado recentemente pela
revista Foreign Affairs apontou que a adesão de Finlândia e Suécia à OTAN
não garante à aliança força suficiente para neutralizar as capacidades russas.
Questionada sobre o que garante a superioridade militar de Moscou no Ártico, Alana Monteiro destaca que "a Federação da Rússia e Putin jogam luzes a esse espaço há muitos anos", espaço "já presente nos discursos de Gorbachev como potencial zona russa para ampliação e usufruto".
"O planejamento para a região é mantido como base não recente, o que nos dá a certeza de existirem vias de estratégia dentro da segurança e defesa da Federação para essa região."
Campos, por sua vez, lista uma série de fatores que garantem a vantagem da Rússia no Ártico apontada no artigo.
"Geografia privilegiada, destacadamente no que diz respeito às rotas pelo Ártico. O litoral russo é, disparado, o maior e mais bem estruturado litoral no Ártico; sua parceria com a China e com muitos outros países do Oriente e do Sul Global; sua capacidade tecnológica; seu conhecimento tácito no que diz respeito às questões de como lidar no Ártico; a possibilidade de construção de uma ampla, profunda e eficiente infraestrutura de portos, atracadores, navios (inclusive os quebra-gelos) etc. Esses fatores podem garantir a superioridade militar/econômica e geopolítica da Rússia no Ártico", argumenta.
Disputa e militarização podem fazer da região palco de guerras no futuro?
A opinião dos três especialistas converge quando questionados sobre a possibilidade de o Ártico futuramente se tornar palco de confrontos entre potências.
Para Silva, o Ártico "cada vez mais se conecta com as tensões geopolíticas globais" e, com a expansão da OTAN na região, "fecha-se um pouco a janela das resoluções pacíficas de controvérsias". Ele aponta que o fim da neutralidade na região, apontado por outros analistas, "traz consigo um risco de escalada de conflitos muito maior, uma vez que um problema militar entre a Rússia e a Suécia, por exemplo, pode virar mais um choque entre a Rússia e a OTAN".
Ele destaca que os esforços atuais tanto dos países do Ártico quanto da OTAN são voltados para evitar o conflito por meio da construção de capacidades militares que visam à dissuasão. Ainda assim, adverte que diante do contexto atual não está descartado um possível confronto no Ártico no futuro.
"Com a expansão da OTAN na região e com a deterioração da relação Rússia-OTAN em outros cenários, em especial na Ucrânia, o espectro da guerra toma contornos mais concretos, já que conflitos em outros espaços podem acabar gerando consequências no Ártico ou tornando a região um espaço de operações no futuro", conclui o especialista.
Alana aponta que o Ártico é "uma zona abundante em recursos e fluxo de capitais, o que nos dá a incerteza de disputa e olhares voltados a todo momento, de diversos países do globo, para a região".
"Sabemos que desde o multilateralismo ao bilateralismo, todas as potências presentes afirmam o compromisso em desenvolver a região para usufruto e aperfeiçoamento da rota comercial, em benefício internacional. Mas pela instabilidade do Sistema Internacional, podemos esperar atritos e reivindicações, choques de interesses entre as principais potências que o cercam."
Campos afirma que a região tem potencial para ser palco de confrontos, embora não nas próximas décadas.
"As rotas comerciais estão sendo construídas, e, ainda, os desafios logísticos, de infraestrutura, econômicos e, portanto, também de organização militar são enormes. Mas reitero: potencialmente há sim risco de conflitos que ficarão mais agudos à medida que os desafios técnicos forem superados completamente e os ganhos econômicos começarem a emergir em sua plenitude", conclui o especialista.
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