Enquanto as emissoras de TV mundo afora transmitiam as competições olímpicas e paraolímpicas, o
governo do presidente Emmanuel Macron apostava todas as fichas no evento para mostrar a imagem de uma França moderna e unida.
Mas dos vexames dos casos de
intoxicação de atletas que mergulharam no rio Sena à falta até de alimentos na Vila Olímpica e de um competidor paraolímpico dormindo no chão por falta de acessibilidade, o evento pode ter terminado sem trazer a mudança esperada pelo político de centro-direita. E mal terminou a cortina de fumaça para o primeiro grande anúncio de Macron no país: a
nomeação do conservador Michel Barnier como primeiro-ministro, o que arrancou a ira da coalizão de esquerda, que outrora ajudou o francês a evitar a
ascensão do partido de Marine Le Pen.
O doutorando em ciência política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Christian de Almeida Brandão pontuou à Sputnik Brasil que os Jogos Olímpicos serviram apenas como uma pausa temporária no conflito político interno em curso na França.
Conforme o especialista, a sigla de Barnier conquistou somente 39 das 577 vagas na
Assembleia Nacional Francesa, enquanto a Nova Frente Popular (coalizão de esquerda) liderou a corrida com 182 assentos.
A escolha do novo premiê fez Macron enfrentar, mais uma vez, grandes protestos nas ruas: só no último fim de semana,
mais de 100 cidades francesas registraram atos contra o que muitos eleitores chamaram de
golpe realizado pelo presidente.
O especialista acrescenta que há três fatores que explicam a derrocada de Macron nos últimos anos: queda da popularidade do governo, reposicionamento político para a direita e crescimento da popularidade dos extremos ideológicos no país.
"Macron chegou à presidência da França liderando um movimento que ele mesmo criou, com a promessa de modernizar o país por meio de um governo centrista e pró-União Europeia. No entanto, ao longo do tempo, as reformas implementadas pelo presidente provocaram descontentamento na população […]. Além disso, Macron se reposicionou ao longo de seu mandato, movendo-se do centro para a direita. Esse deslocamento possibilitou o renascimento da centro-esquerda francesa, que havia sido praticamente engolida pelo movimento do presidente."
Já José Roberto Gnecco, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pós-doutor pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas, acredita que a
indicação de Barnier "é uma jogada inteligente que pode até não dar certo quanto ao nome em si", mas faz com que Macron ganhe tempo para conduzir o governo ao jogar "a esquerda contra a direita" e vice-versa.
"O que eu enxergo é que o
Macron tem feito uma série de movimentos para se perpetuar no poder e manter a linha política que ele quer manter, e até onde eu enxergo está sendo bem-sucedido. […] Então tem assuntos que ele se mete, até fala em enviar tropas para a Ucrânia, mas outros em que ele fica quieto, deixando a poeira baixar. O Macron enfrenta problemas e dificuldades com os imigrantes, assim como a Europa inteira, e isso possibilita o crescimento da extrema-direita, uma vez que há dificuldade de quebrar os ovos para encontrar uma solução, porque nunca nenhuma é boa para todos. E sendo os nacionais eleitores a força político-eleitoral mais forte, são eles que
acabam ditando qual política a Europa vai seguir em cada uma de suas nações. Do jeito que está sendo conduzida a democracia liberal na Europa, a tendência é que cada vez mais a ultra-direita tenha força", argumenta.
Com relação às controvérsias em relação aos Jogos Olímpicos, o especialista enfatizou que a realização do evento mostra ao mundo as características do país anfitrião. Por isso, acredita que a França apostou pela primeira vez na história em uma abertura do evento longe dos tradicionais estádios, decisão bastante criticada.
"Quanto à questão do rio Sena, realmente essa é importante. Alguns vão tentar impactar Macron, mas quem já trabalhou, quem já fez os Jogos Olímpicos, como eu fiz uma parte no Brasil, sabe que quem opina mais sobre os Jogos Olímpicos no país, a não ser que queira muito, não é o presidente. É o prefeito. Deve-se mais à prefeita de Paris a forma como foram realizados os Jogos Olímpicos em nível local, a sua distribuição, a sua diagramação, do que ao próprio Emmanuel Macron, a quem coube as honras políticas. Basta olhar para o caso do Rio de Janeiro, do Brasil, que o prefeito que fez os Jogos Olímpicos do Rio [de Janeiro] hoje ele se elege com 70% dos votos em qualquer eleição. Por quê? Porque ele soube, no bom sentido, usar bem o dinheiro federal para maximizar o legado para a cidade", compara.
Na França, a política externa cabe ao presidente eleito, enquanto os assuntos internos ficam a cargo do primeiro-ministro, que é indicado conforme os resultados eleitorais parlamentares.
Nos últimos anos, uma das marcas da gestão Macron foi o
envolvimento francês no conflito na Ucrânia, que gerou aumento no custo de vida da população por conta do fim da importação do gás russo (mais barato) e, também, da
menor capacidade de investimentos do país em defesa.
Para João Victor Motta, pesquisador do Observatório de Regionalismo e doutorando em relações internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas, isso ajudou ainda mais a mobilizar tanto a esquerda quanto a extrema-direita contra o atual governo.
Conforme o especialista, as Olimpíadas ajudaram a expor a "fragilidade do Estado francês frente aos desafios estruturais e à capacidade de investimento interno, em um momento de ampla fragmentação no país. As Olimpíadas se tornaram a síntese de um momento histórico de profundas contradições internas, apresentadas em escala global e transmitidas para todo o mundo".